Desamparo - o afeto da atualidade
O desamparo é um afeto que faz parte da condição subjetiva e singular do humano.
Do ponto de vista biológico, o bebê humano nasce desamparado. Ele precisa do cuidado do outro para sobreviver e se desenvolver. Nessa fase, a criança alimenta a ilusão de que é o único centro do seu ambiente, como se a vida girasse em torno dela. A partir da atenção de seus cuidadores, ela irá estruturar seu amor-próprio.
Mas, ao longo da vida, o indivíduo vai descobrindo que seus desejos nem sempre são satisfeitos. Então, surge um outro fator, o social. Dependendo de suas vivências, situações podem gerar angústias, culpas, medo, rejeição e fantasias de destruição.
Em “O Mal-Estar na Cultura” (1930), Freud descreve o processo civilizatório dentro da necessidade do indivíduo em conter suas pulsões rumo à civilidade. Para isso, ele troca seus anseios de felicidade por segurança. No entanto, o indivíduo se desespera ao constatar que, de fato, o mundo não lhe dá segurança.
Assim, ele sai em busca de algo ou alguém para reorganizar o seu mundo: a figura do “pai garantidor”. Essa figura idealizada, que restabelecerá a lógica da existência, pode ser encontrada nas religiões, na política etc.
A partir de 1970, com a implantação do modelo neoliberal, nasce a figura do “Estado mínimo”, eliminando muitas políticas públicas. Além de outras consequências, isso ocasionou mais competição no trabalho, individualismo e um excesso nos níveis de consumo.
Quando o Estado é insuficiente em exercer suas funções, como garantir direitos básicos, é gerado um ambiente de constante pressão social. Isso é um dos fatores para que o indivíduo procure em outras instituições (religiosas, esportivas, políticas etc.) suporte e alívio para suas tensões internas. Através das concepções ideológicas dessas instituições, ele interioriza sistemas de crença e padrões de moralidade.
Além de outros fatores, a personalidade do indivíduo é alicerçada no reconhecimento de que ele existe de forma autônoma, como alguém que tem autoestima e senso de identidade. Mas o indivíduo precisa ser reconhecido também pelo outro, tanto na esfera íntima - sendo amado, como na coletiva – se sentindo incluído.
Mas, dependendo de como está estruturada a subjetividade do indivíduo, a forma como se autorreconhece e se autodetermina pode ficar comprometida. Isso impacta o modo como ele se relaciona socialmente. Nesse sentido, a marginalização de um número significativo de indivíduos de uma sociedade, seja pela exclusão social ou pela falta de condições econômicas, aumentará o risco de sofrimento psíquico da sua população.
Em todo o mundo, o sentimento de desamparo atingiu um patamar preocupante desde a pandemia da Covid-19. E foi intensificado por eventos como eleições e guerras. No Brasil, já eram observados seus efeitos no crescente aumento dos discursos de ódio.
O discurso de ódio é uma forma de comunicação violenta que propaga notícias falsas e dissemina preconceitos, intolerância, desprezo e falta de empatia. Pode ser propagado pelas redes, muitas vezes, em grupos da chamada “deep web” (que não são visíveis pelos mecanismos de pesquisa). Seu principal alvo são grupos ditos “minoritários”.
Em 2022, a Safernet, organização que oferece orientações sobre violações aos direitos humanos nas redes, registrou mais de 74 mil casos envolvendo discursos de ódio em sua central de denúncias.
A disseminação das chamadas “fake news” em aplicativos (como o whatsapp, youtube, tiktok etc.) criam potenciais alvos do ódio. Esse alvo é alguém com comportamento, gênero, traços culturais, orientação sexual, credo ou qualquer outra característica que o enquadre como tal.
Quem não consegue identificar as próprias fantasias de desamparo, não saberá lidar com suas inseguranças. Assim, também não conseguirá lidar com suas demandas pulsionais. Quando o ego não suporta lidar com os próprios desejos, a tendência será projetá-los fora.
Quando o indivíduo projeta sua insegurança no outro, ele encontra um alvo externo para descarregá-la. Toda vez que o indivíduo sente insegurança, é acionado um gatilho em que o outro é visto como inimigo. O discurso de ódio serve para manter essa dinâmica.
O desamparo é um afeto que faz parte da condição subjetiva e singular do humano. Mas a falta de garantia de segurança estatal, seja material ou simbólica, interfere no equilíbrio psíquico da sociedade. Para que pais e cuidadores exerçam suas funções de forma “suficientemente boa” (usando a expressão de Winnicott), é fundamental que o Estado faça a sua parte, na forma de políticas públicas, assegurando direitos aos seus cidadãos.
Referências:
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, Vol.. 21. Rio de Janeiro: Imago.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-02/denuncias-de-crimes-na-internet-com-discurso-de-odio-crescem-em-2022
https://new.safernet.org.br/helpline?gclid=CjwKCAiA04arBhAkEiwAuNOsIvs4kh_mBUgFk078PYKLocxvoMzHmNeJSayiJA_Y5gSqyb7l2NKXMRoCWAwQAvD_BwE