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O Prazer e o Desprazer em A Hora da Estrela

A psicanálise possui uma relação de muita proximidade com a literatura.

O Prazer e o Desprazer em A Hora da Estrela

A psicanálise possui uma relação de muita proximidade com a literatura. Não é à toa que Freud elaborou seu famoso “complexo” a partir de Édipo Rei, de Sófocles.

Assim, no início da minha formação como psicanalista, ao me deparar com o Princípio do Prazer, lembrei de Clarice Lispector e de sua Macabéa, de A Hora da Estrela. Sem esquecer que a personagem é minha conterrânea e que o livro já havia me inspirado, como artista plástico, a pintar um retrato de sua autora.

Dito isso, considerando as palavras de Lacan ao dizer que "a psicanálise só se aplica como tratamento a um sujeito que fala e que ouve", farei breves considerações sobre o prazer e o desprazer em “A Hora da Estrela”:

Nascida no sertão alagoano, Macabéa fica órfã e vai morar com uma tia em Maceió. Depois muda-se para o Rio de Janeiro. Após visitar uma cartomante, que prevê a ela um futuro feliz, se dá conta da sua própria infelicidade. Depois do impacto dessa epifania, é atropelada e morta.

O livro é narrado por Rodrigo S.M., trazendo uma linguagem que parece refletir o inconsciente da protagonista, provocando, no mínimo, curiosidade no leitor. O que a move na sua ligação com ela mesma, com a vida e com o outro?

A relação entre a felicidade e a infelicidade de Macabéa nos diz algo sobre a questão do prazer e do desprazer em Freud. Para ele, a mente é regida por dois princípios: o princípio do prazer, que está ligado ao id, e o princípio da realidade, que está relacionado ao ego. Nascemos sob total influência do id, por isso o princípio do prazer domina até o aparecimento do ego.

Basicamente, a teoria da personalidade é a relação entre id, superego e ego. O id, como estrutura mais arcaica, dotada de impulsos sem nexo com a realidade; o superego, relacionado à moral e que tenta controlar o id, e o ego, um conciliador das outras duas estruturas.

Rodrigo mostrava que Macabéa era sexualmente reprimida pela educação da tia religiosa. Em determinado trecho do livro, o narrador dá sinais da libido da protagonista, ao dizer que, em plena ditadura militar da época em que vivia, dos anos 1970, Macabéa tinha fixação por soldados, que, ao mesmo tempo, causava nela um estremecimento de prazer e de terror, num misto de Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte).

Durante a narrativa, também podem ser percebidos muitos sinais de baixa autoestima, apatia, sensação de não pertencimento e vazio. Por exemplo, ela gostava de ovo cozido de boteco, mas a tia, certa vez, disse que o ovo era danoso ao fígado. Por isso, toda vez que comia ovo, sentia dores, mas do lado oposto onde ficava o órgão.

Salienta-se, também, que há uma possível similaridade entre Macabéa e Anna O., paciente histérica de Breuer e, posteriormente, de Freud. Como Anna O., que não ingeria água até relembrar uma cena da infância, onde um cão bebia água em um copo, Macabéa não gostava de comer, apresentando enjoos. Quando criança, havia comido um gato frito, perdendo, desde então, o apetite.

Mesmo assim, Macabéa pensava que a sua infância tivesse sido feliz. No livro, segundo o narrador, a infância, por mais traumática que seja, será sempre “encantada”. Isso se dá porque muito desse período permanece no inconsciente.

Clarice também mostrou como a personagem vivia na escassez, porque Macabéa não tinha vontade ou querer. Mas nos deu muitas pistas dos seus desejos. Ora desejava ter as carnes fartas da colega, Glória, ora a atenção de seu pretendente, Olímpico. Mas “Olímpico, na verdade, não mostrava satisfação alguma em namorar Macabéa” (Lispector, p.53, 2019).

Por Macabéa se sentir incapaz de realizar seus desejos, sua angústia era mostrada no vazio que sentia no entardecer do domingo, que considerava o pior momento da vida. Um vazio sem motivos aparentes, porque a representação provavelmente ficara lá no seu inconsciente ainda criança.

A tia jamais pronunciou o nome dos pais de Macabéa, reforçando que suas vivências infantis continuassem inconscientes. De acordo com Freud, o afeto (angústia) se relaciona à lembrança e gera o sintoma. Esse processo ou mecanismo é chamado de “retorno do recalcado”.

Macabéa “quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada” (Lispector, p.30, 2019). No livro A Interpretação dos Sonhos (1900), o autor diz que a formação do sonho se estabelece também por desejos reprimidos do inconsciente. Assim, o “sonho é a realização de um desejo” ou “poderia revelar-se como um temor realizado”.

Devido à fragilidade da sua estrutura egoica, Macabéa parecia não estar preparada para lidar com o mundo externo, não entendendo claramente o que significava “bem-estar”. Nem mesmo se dava ao prazer de comer sua sobremesa favorita: romeu e julieta.

Era datilógrafa, mas semianalfabeta e dividia uma habitação precária com pessoas sem vínculos de afinidade ou familiaridade. Demonstrava uma percepção da realidade carente de objetividade, constantemente impressionável e fragmentada nas suas relações. Sua fragmentação talvez fosse por ignorar ou se defender da própria ideia de inconsciente.

Macabéa também traz uma simbologia muito representativa do povo brasileiro que tenta fugir do desprazer, da fome, da violência.... Do povo que é privado do prazer pela inconsistência de um Estado que não sabe sequer quem é o seu cidadão.

Mas Macabéa é muito mais do que isso. A prova é sua epifania nos momentos derradeiros da sua vida física. Em um dos momentos mais significativos do livro, Clarice, por meio de Rodrigo, escreve: “mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que respiro” (Lispector, p.34, 2019).


Referências:
A Hora da Estrela, de Clarice Lispector – Rocco – 2019.
A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud.
O processo de alfabetização política – Paulo Freire – Acesso on line http://acervo.paulofreire.org:8080/xmlui/handle/7891/1126

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