"O Homem dos Lobos" - uma breve síntese
Acompanhar a análise de “O Homem dos Lobos” é nos deparar com uma densa fenomenologia. Mas um fenômeno poderá estar ou não vinculado às causas inconscientes geradoras de sintomas e/ou ao sofrimento do indivíduo.
Trata-se da análise de um rapaz russo de família abastada que, aos quatro anos de idade, apresentou um quadro de neurose infantil. Desde então, teve uma história de internamentos em sanatórios. Após ser acometido por uma gonorreia e ficar debilitado, a ponto de não conseguir gerir sozinho a sua rotina, recorre à psicanálise. O caso ficou emblemático pelo fato de o analisando, além de ter sido paciente de Freud, ter feito análise com outros notórios psicanalistas ao longo da sua vida. O nome verdadeiro de o “O Homem dos Lobos” era Serguei Konstantinovitch Pankejeff (1886-1979).
O ambiente familiar
Na primeira infância, sua vida foi na zona rural junto da família - os pais e uma irmã mais velha. Não havia indícios que mostrasse que o relacionamento dos pais fosse desarmônico, ao contrário. No entanto, o pai tinha recorrentes crises depressivas e a mãe sofria de distúrbios intestinais.
Sua irmã, durante a infância, tinha um comportamento cheio de vida. Era inteligente e admirada pelo pai, tornando-se, por isso, uma rival. Na adolescência, o relacionamento com ela passa a ser amigável, mas, durante uma viagem, a irmã toma veneno e morre distante da família.
Durante a vida, tiveram empregados da casa com os quais ele teve um contato estreito. Entre eles, a babá (Nânia), uma mulher humilde que nutria muita afeição por ele.
Através de relatos, ele foi, até os três anos, uma criança terna e de temperamento fácil. Isso muda após uma viagem dos pais, quando seu comportamento fica agressivo, passando a ter atitudes perversas até com insetos e pequenos animais.
Um acontecimento marca a sua mudança de comportamento: o dia do Natal quando também completaria quatro anos, em que teve um ataque colérico por ter ganhado apenas um presente, mas desejava dois.
O lobo
Quando tinha cinco anos de idade, a família mudou de residência. Nessa época, recordava ter ficado atormentado com a figura de um lobo em um livro infantil. Seu terror por essa figura aumentava sempre que a irmã, propositadamente, usava a imagem do livro para aterrorizá-lo.
O seu medo era de ser devorado pelo lobo (fase oral). Depois desse fato, cavalos, lagartos, besouros, que antes eram objetos de sua crueldade, passaram a causar nele sentimentos de angústia. Certa vez, ao perseguir uma borboleta com o intuito de capturá-la, foi tomada de um pavor que o fez desistir da perseguição.
Havia uma identificação primária dele com o pai, que era visto como um ideal e como poderoso. Certa vez, ele sentiu orgulho quando Nânia havia dito que a irmã era filha da mãe e ele era o filho do pai. Mas, para ele, o pai preferia a irmã. E um sonho se tornará um gatilho para que o relacionamento com o genitor passasse a ser de conflito e medo.
A “ameaça castradora”
Ainda muito pequeno, com três anos e meio de idade, lembrou que a irmã tentou seduzi-lo, ao tentar pegar no seu pênis, mas ele a rejeitou. A irmã tentou convencê-lo dizendo que Nânia também pegava no pênis do jardineiro. Na verdade, mesmo antes desse fato, tanto ele quanto a irmã brincavam de mostrar a bunda um ao outro depois do banho, tendo ele uma posição ativa nessas situações.
Posteriormente, o comportamento sedutor da irmã foi comprovado por um primo mais velho, que passou por situação semelhante com ela. É importante salientar que a razão de rejeitar a irmã na infância não ocorreu em razão do objeto (ser irmã ou do gênero feminino), mas da hostilidade que, então, sentia por ela.
Ao rejeitar sexualmente a irmã, ele passa a seduzir a babá mostrando o pênis, mas foi repreendido por ela. Ela dizia a ele que, em crianças que se comportam assim, no lugar do pênis, nasce uma ferida. Algum tempo depois, a “ameaça castradora” da babá será corroborada por um episódio em que ele assistirá a irmã e uma amiguinha tomarem banho juntas, comprovando que elas não possuem pênis. A época da investida sedutora da irmã e da rejeição da babá correspondem ao período de seu despertar sexual, justamente quando ele começa a se mostrar agressivo.
Anos mais tarde, já na puberdade, ele tentou fazer investidas sexuais na irmã, mas não foi correspondido. Logo após, ele seduz uma jovem empregada que tinha o mesmo nome da irmã. Assim, cria um padrão de se relacionar sempre com mulheres de nível sociocultural inferior ao dele, na tentativa de se contrapor à intelectualidade da irmã. A escolha do objeto sexual era, portanto, heterossexual.
Depois do fracasso sexual com a babá (ao regredir a fase anal), para se vingar, ele passa a descarregar toda a raiva que sente nela, assumindo um lado sádico. Isso também ocasionou que ele deixasse de lado a masturbação, o que significou a volta à fase pré-genital, mais precisamente a sádico-anal. É nesse momento que ele demonstra uma atitude perversa também com insetos e cavalos.
O episódio com a irmã, a rejeição de Nânia e o medo da castração fez o investimento libidinal da criança se voltar ao pai. Há outros fatores que contribuem para isso que ainda serão abordados (cena primária). O comportamento sádico que ele assume terá como consequência os castigos do pai. Isso vai satisfazer suas tendências masoquistas.
A partir das histórias infantis, questões ligadas à sexualidade surgem na sua vida. Certa vez, ele se impressionou pelo fato da avó da Chapeuzinho Vermelho ter sido tirada da barriga do lobo. Isso trouxe dúvidas sobre o nascimento dos bebês: “Será que os homens podiam carregar filhos no corpo”? Afinal, Nânia havia dito que ele era o filho do pai (e não da mãe ou de ambos).
Sonhos
O evento que marca o aparecimento dos primeiros sintomas de angústia no analisando foi um sonho que ele teve na infância. Sonhou com seis ou sete lobos brancos, que se assemelhavam também com cachorros pastores e com raposas de grandes caudas, que estavam em cima de uma grande nogueira, que ficava situada em frente a sua janela. Os lobos estavam imóveis, mas atentos a ele, o que o apavorou e fez com que ele acordasse aos gritos.
Por causa desse evento, ficou com medo de sonhar. Esse medo persistiu, mais ou menos, até os doze anos de idade. O lobo do sonho, para ele, se relacionava ao lobo do livro infantil. O mesmo que a irmã usava para aterrorizá-lo. O fato de os lobos serem brancos foi explicado pelo fato de existirem muitas ovelhas na propriedade, sendo que o pai, com alguma frequência, o levava para vê-las.
Os lobos estavam em cima de uma árvore (nogueira) se relacionando a uma fábula que seu avô contava sobre um lobo que, certa vez, entrou em uma alfaiataria para atacar seu dono, mas que tem sua cauda arrancada (castração) e foge apavorado. Muito tempo depois, o alfaiate vai passear pelo bosque e se depara com a alcateia do velho lobo. O homem, para se proteger, sobe em uma árvore, mas o velho lobo, para se vingar, arquiteta para que os lobos mais jovens alcancem o homem no alto da árvore.
Para isso, o lobo velho ficaria na base enquanto os demais subiriam em cima dele e assim fariam uns com os outros até atingirem o patamar em que estava o homem. Nessa hora, o alfaiate teve a ideia de gritar: “Peguem o lobo velho pela cauda!” E o velho lobo, que estava na base, se apavora e foge, recordando o que aconteceu com ele, enquanto os outros se espatifam no chão, dando chance para a fuga do homem.
O sonho havia provocado nele zoofobia e, ao longo da análise, outros sonhos se sucedem com simbolismos muito semelhantes. O motivo mais contundente para o surgimento da neurose era o medo do pai que, no sonho, foi simbolizado pelo lobo. Além disso, o sonho ocorreu dias antes do Natal, que era também seu aniversário. A árvore com os lobos remetia à árvore de Natal.
Na época do surgimento da sua fobia, a mãe tentou doutriná-lo com a bíblia e ele tornou-se devoto. Passou a ter rituais frequentes, como beijar imagens sacras e fazer orações prolongadas. Ao mesmo tempo, se culpava por ter pensamentos hereges, como relacionar a Santíssima Trindade com fezes. Pessoas em situação de rua também causavam nele culpas e sentimentos contraditórios, como pena e pavor.
"Cena primária"
A lembrança de um evento, que Freud chamou de cena primária, ajudou a explicar o sonho com os lobos. Quando o analisando tinha um ano e meio presenciou uma relação sexual entre os pais. O coito foi feito por trás, posição análoga à dos animais (a tergo), como a cópula dos cães que ele observava na propriedade. A postura do pai, para o analisando, também lembrava a da figura do lobo no livro infantil.
Freud vincula esse medo à tentativa de reprimir seu anseio de se satisfazer com o próprio pai. Portanto, da cena primária até o sonho, se desdobram os efeitos patogênicos, como a angústia.
Outro efeito é a identificação com a mãe, que tinha frequentes desinteiras. A criança, ao ver o coito, defeca na cama onde estava deitado, que ficava próxima à dos pais. Há relatos de que ele até os três anos tinha o intestino solto, a ponto de fazer o uso dessa incontinência para provocar a babá e a governanta. Mas, com o passar do tempo, ele passa a ter constipações. No curso da análise, Freud relata que o paciente só fez evacuações por enemas e laxantes.
O paciente também relatou que o sexo por trás (a tergo) era uma garantia que sentiria prazer na relação. E sua atração era sempre por mulheres de bunda grande e empinada (fetiche).
Considerações finais
Acompanhar a análise de “O Homem dos Lobos” é nos deparar com uma densa fenomenologia. Mas um fenômeno poderá estar ou não vinculado às causas inconscientes geradoras de sintomas e/ou ao sofrimento do indivíduo.
Para Freud, trata-se de neurose obsessiva, com o Édipo invertido, em que houve recalcamento do desejo homossexual pelo pai. Depois de Freud, psicanalistas trataram o caso como psicose. De qualquer modo, o sonho com lobos gerou uma fobia e os problemas intestinais provavelmente uma histeria de conversão.
Referência:
FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil. Obras Psicológicas Completas, vol. X. Rio de Janeiro: Imago, 1996.