Narcisismo nos tempos atuais
Existem muitas definições possíveis para o narcisismo. Não há um único conceito que alcance a complexidade do termo.
Ouvimos falar do narcisista como sinônimo da pessoa que se preocupa muito com a própria imagem. Mas existem muitas definições possíveis para o narcisismo. Não há um único conceito que alcance a complexidade do termo.
Em linhas gerais, somos todos narcisistas, no sentido de que investimos energia em nós mesmos para nosso próprio bem-estar e autoafirmação. Mas o narcisismo se torna patológico quando gera sofrimento para o indivíduo, comprometendo suas relações, consequência de deficiências no seu desenvolvimento identitário e social.
É comum no narcisista atrair relacionamentos com pessoas que os colocam como centro das atenções e que reforçam seu ego ideal. Ao mesmo tempo, ele transparece o tempo todo que o outro não é tão bom quanto ele. Esse jogo faz com que ele se valide escondendo, de si mesmo e dos outros, a sua insegurança e baixa autoestima.
O narcisista também vivencia uma constante dinâmica de comparações, onde não há espaço para a ponderação ou o caminho do meio. Sua lógica é binária: é tudo ou nada, sim ou não, o mais feio ou o mais bonito. Assim, o êxito do outro é encarado como um fracasso seu.
Como só olham para si mesmos, os narcisistas não conseguirão manter vínculos sinceros com os demais. Eles olham do topo, por isso têm pouca empatia com o outro, que julga estar abaixo dele. Não significa que ele não tenha capacidade de amar o outro, mas vai fazê-lo do seu modo. A questão é se outro vai entender isso como uma forma de amor.
Freud usou um termo chamado “narcisismo das pequenas diferenças” (O Tabu da Virgindade, 1918) para explicar que, entre grupos adversários, são as pequenas, e não as grandes discordâncias, o combustível para a rivalidade. Através dessas pequenas discordâncias se mantém o outro grupo na condição de estranho, o que potencializa a agressividade entre eles.
Ao mesmo tempo, a estranheza também causa indiferença e a falsa ideia de que não precisamos nos transformar, mas mudar a realidade externa a partir da negação do outro.
É o que ocorre atualmente quando construímos muros, sejam nas nossas casas, condomínios e até entre países. É o negacionismo como forma de se defender da realidade.
Atualmente, as pequenas diferenças ficaram mais facilmente manipuláveis. As novas tecnologias também podem ser utilizadas para disseminar intolerância e agressividade através de “fake news”, porque atingem, de forma mais eficaz e abrangente, uma quantidade cada vez maior de pessoas.
Freud (Psicologia das Massas e Análise do Eu, 1921) utiliza uma fábula de Schopenhauer sobre a necessidade dos porcos-espinhos se aquecerem no inverno. Ao mesmo tempo em que precisam um do outro para se aquecerem, a proximidade também causará o incômodo dos espinhos. Do mesmo modo, é necessário que o indivíduo encontre uma distância segura do outro que viabilize sua vida em sociedade sem tantos atritos. Mas o narcisista não é capaz de se relacionar, senão de forma conturbada e intensa.
Para Bauman (1925-2017), liberdade e felicidade são oferecidas do ponto de vista mercadológico. O indivíduo pós-moderno possui relação limitada com sua identidade pelo seu nível de consumismo, que refletirá na sociedade o quanto ele é bem-sucedido. Isso alimenta seu narcisismo em muitas camadas, porque dá a sensação de que é diferenciado em relação aos demais. Ele corre contra o tempo na sua busca ilusória por completude e autossuficiência, ao mesmo tempo em que ignora as limitações inerentes à condição humana, como o envelhecimento, a doença, a morte…
O Estado neoliberal reforçou o consumismo exagerado quando colocou apenas no indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso, que deverá ser conquistado às custas de muito esforço e com a promessa de que, assim, ele atingirá sua liberdade. Nesse sentido, a filósofa Julia Kristeva (As Novas Doenças da Alma, 2002) alerta sobre como as novas patologias estão relacionadas ao pouco tempo que o homem contemporâneo tem se dedicado à sua vida psíquica. Segundo a autora, a humanidade está cada vez mais imprensada entre o tempo - que parece cada vez mais escasso, e o espaço competitivo das cidades, gerando indivíduos cada vez mais narcisistas.
Como um narcisista não se percebe como tal, é improvável que procure ajuda profissional de modo voluntário. Ao contrário, vai procurar sempre colocar o problema em quem o rodeia. Isso pode significar que ele pode identificar seu próprio narcisismo como se fosse do outro, mas ser incapaz de se enxergar assim.
Isso abre a discussão que diz respeito a cada um de nós refletir quando está culpabilizando o outro de alguma coisa: a questão diz respeito mesmo ao outro ou a nós mesmos? Isso é uma questão crucial dos nossos tempos: a necessidade de desenvolver uma postura mais empática nas relações.
Por isso, o narcisismo é um tema tão atual no sentido de refletirmos o que acreditamos ser distinto, diverso ou contrastante a nós – nos tirando da nossa zona de conforto. Narciso não precisa achar feio o que não é espelho, seja representado por um sentimento de menos valia, um pensamento político divergente ou, simplesmente, sua própria sombra.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, Ed. Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O tabu da virgindade, 1918.
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu, 1921.
KRISTEVA, Julia. As Novas Doenças da Alma. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2002.