Frase Psicanalítica | Hilda Hilst
O que nos impede de amar? Qualquer resposta para essa pergunta seria limitada demais, em face da sua complexidade.
"Ama-me.
Ainda é tempo.
Interroga-me.
E eu te direi
que nosso tempo é agora."
Hilda Hilst, nossa escritora “maldita”, no trecho do seu poema “Dez chamamentos ao amigo”, fala de amor, do “eu”, do outro e de suas expectativas.
O que nos impede de amar? Qualquer resposta para essa pergunta seria limitada demais, em face da sua complexidade. No entanto, podemos analisar o trecho poético pelo que a psicanálise chama de “ideal do eu”.
Quando Freud elaborou a segunda tópica, ele denominou de superego a instância psíquica que se separa do ego e que, entre outras funções, se investe como uma espécie de julgador do ego. O ideal de eu é, portanto, uma de suas subestruturas.
Existe uma outra subestrutura semelhante (não sinônima) ao ideal do eu, que é o eu ideal. O eu ideal é mais primitivo que o ideal do eu, porque advém das próprias ilusões narcisistas da criança.
O ego ideal do indivíduo se aliará ao eu ideal do pai e da mãe (ou de quem os represente). Esse elo vai originar o ideal de eu da própria criança que, além de estar ligado a outros fatores (cultura vigente, geração etc.), sua influência irá fazer parte do cotidiano do indivíduo. E representará o que ele acha que o mundo (o outro) quer dele e o que ele pode almejar (ou não) para a própria vida.
Para Lacan, o amor tem a ver com o outro, com doar algo que não compreendemos em nós mesmos. Ou seja, haverá muito conteúdo inconsciente em jogo nas nossas interações amorosas, amizades e nos nossos relacionamentos em geral.
Mas, se a expectativa do outro passa a ser a sua própria expectativa, o “eu” do indivíduo passa a ser frequentemente julgado a partir desse parâmetro. Em uma espécie de negação de tudo o que não atenda a esse referencial.
Para entender o ideal do eu, é preciso entender o que é o ego na estrutura da psique. O ego é uma reflexão do existir do indivíduo, a partir das suas funções (percepção, pensamento, senso crítico, linguagem etc). Além de ser o mediador entre o id e o superego.
Essa mediação pode ser assim exemplificada como se o ego quisesse fazer turismo. Chegando à uma agência, ao escolher o roteiro, ele descobre que irá gastar todas as suas economias na viagem.
Ao mesmo tempo, o id vai querer fazer a viagem de qualquer jeito, mesmo que sua conta bancária fique zerada. Por sua vez, o superego irá dizer que, se ele viajar, vai se endividar. É aí que entra a função mediadora do ego, para tentar harmonizar os pensamentos e as ações do indivíduo e chegar a uma solução prática.
O ego é, portanto, a estrutura psíquica que está relacionada à própria identidade do indivíduo, ao que é importante para ele em contrapartida ao que importa para os outros.
Quando a autora escreve “interroga-me”, adverte que o indivíduo precisa se questionar sobre as suas próprias expectativas e valores. Assim, torna-se imprescindível relativizar, questionar o que é visto como absoluto. Sem isso, a vida será muito suscetível às ansiedades, depressões e suas drogas.
Ainda mais em tempos atuais, com os valores pautados pelas redes sociais, a aceitação da própria aparência passa pelos valores do “feed” e seus “filtros”. Em alguma camada, essa busca idealizada se relaciona ao amor que supostamente “nos era devido, mas que não recebemos” e buscamos “fora”.
Com isso, o ideal do eu pode se transformar em um projeto. Um projeto com pouca chance de ser alcançado. Quem não conhece alguém que busca um padrão de beleza x, sendo que esse “x” nunca será atingido porque está em constante mutação, de acordo com a época, os valores sociais etc?
Nesse sentido, a autora afirma que “nosso tempo é agora”, referindo-se em viver o presente e “no presente”, sem condicionar a vida a um futuro inalcançável. Questionando-se, porque nada é absoluto. Senão o indivíduo se torna um mero objeto de uma parte fragmentada dele mesmo e, consequentemente, das aspirações dos outros na sua busca por um “amor” inatingível.
Referências:
FREUD, Sigmund. O id e o ego. 1923
HILST, Hilda. Da poesia. São Paulo, 2017
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica: uma abordagem didática. Porto Alegre, 1999.